sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

O homem solitário.



Pendurado ali na parede, onde meus olhos o alcançam dia e noite, vejo e me lembro de como tudo começou.
Num cavalete, bem posicionado sob a luz natural do vitrô da sala de jantar, estava a tela branca, nua, a esperar pelos traços firmes da mão do pintor.Meu pai, meio sentado, meio em pé, recostado na borda de um banquinho alto, arrumava as tintas, pincéis, carvão, cinzeiro, cigarros e sua bebida da época.O cheiro das tintas permanece guardado lá no fundo da memória juntamente com a aguá raz e tinner.Sentei-me mais atrás a fim de olhar sem atrapalhar, prestando o máximo de atenção para não deixar escapar um movimento sequer.Então, surgiu o primeiro traço, reto vertical seguido de outros paralelamente iguais, apenas menores dando a sensação de profundidade.Depois, igualmente o outro lado da tela, como se espelhasse a imagem.Sem me conter, acabei perguntando o que seria e ele me disse,” já , já você entenderá”.Os traços se fecharam com simplicidade dando forma de contruções altas.Meu pai parou, pegou a tela e fez uma cara de satisfeito passando então as mãos na lateral da camisa para limpar o preto nas pontas dos dedos macios e bem cuidados.Acendeu um cigarro, e pegou a palheta.Espremendo os tubos das tintas, foi colocando as cores escolhidas para o quadro e com a precisãosábia e simples de um artista, distribuiu as cores de forma graciosa e perfeita com a ajuda dos pincéis.Cores vibrantes que significavam a emoção que ele sentia, e as frias no horizonte como se nelas pudesse buscar o conforto que estava precisando nessa fase conturbada da vida.Viúvo, dois filhos ainda para criar, diplomas guardados, sua vida e sonhos roubados pela tragédia de perder pessoas queridas, vendo a bebida se apoderar de suas vontades e ações, buscando nas poesias e telas a saída para suavizar os problemas que a vida lhe trouxera, colocando nelas o que conseguia extravasar dos sentimentos contidos.Um dom de sensibilidade que poucas pessoas conseguiam entender.Sofria mais que outras pessoas, não sendo compreendido por enxergar as coisas de maneira única e diferente.O toque mais peculiar que fez a diferença no quadro, foi a figura de um homem andando pela rua deserta, onde a única forma junto dele era sua sombra.O que ele buscava?A felicidade, a paz interior, alguém no final da rua, uma mão, uma palavra, pessoas que existiram e não estavam mais ali, ajuda, talvez Deus, não sei. Jamais vou saber ao certo o que meu pai quis nos revelar com essa tela linda a qual tive o privilégio de ver surgir como mágica, mas a ambiguidade que ela produz, com certeza é uma das coisas que meu pai com propriedade soube fazer.Pequena de tamanho, mas com um significado enorme para quem pode vê-la, cada vez que paro diante dela, me transporto para esse dia incrível que pude ficar perto de meu pai vendo um lado seu que para mim era escasso de presenciar. Meu pai se foi, mas continua vivo no meu coração e nas telas espalhadas com carinho pela minha casa.” O homem solitário”, como meu pai denominou, é uma das telas dele que mais gosto.Como um velho amigo de confiança, ele pode me ver em diferentes fases da vida, presenciando mudanças, glórias, tristezas, esperanças, risos, choros e permanecendo intacto a me presentear com sua beleza simples. Espero que ele permaneça sempre perto de mim e que meus filhos o valorizem tanto quanto eu.
Esse quadro foi pintado por Levy de Abreu Cassoni quando eu contava apenas com 9 ou 10 anos de idade.Direitos reservados ao autor.Obrigada.
Vylna Cassoni
22/01/09

Nenhum comentário:

Postar um comentário